terça-feira, 30 de novembro de 2010

A “guerra” no Rio de Janeiro

Os EUA da era Bush inventaram uma guerra contra o Afeganistão e depois contra o Iraque. Não se tem dúvidas de que essas duas guerras foram forjadas para garantir o total cumprimento dos interesses norte americanos em relação à extração de petróleo, matéria prima extremamente necessária à maior economia do mundo, mas que se torna cada vez mais escassa no território estadunidense. Sendo um recurso natural finito e vendo seu fim num futuro bem próximo, não resta outra alternativa aos EUA senão buscar o petróleo em lugares em que ele é encontrado com certa abundância, como é o caso do Oriente Médio.

Forjaram uma guerra. Mataram crianças, mulheres e homens inocentes por puro interesse econômico. A vida humana pouco importa se o que está em pauta, no caso dos EUA, é a manutenção de sua dominação imperialista, ou no caso dos demais países ricos, a produção e a acumulação de riquezas. Assassinar, fuzilar e queimar pessoas inocentes são práticas comuns aos usurpadores da vida humana, considerados por intelectuais do mundo inteiro como os proponentes de um mundo melhor, aqueles que tematizam, por onde passam, a erradicação da miséria, o fim da violência e, como não poderia ser diferente, a manutenção permanente do Estado de Direito.

Por todo o mundo, pessoas se compadecem desses infelizes, os algozes da raça humana, como se eles estivessem realmente preocupados com a vida dos bilhões de homens, mulheres e crianças que sofrem de fome, de doenças, pela falta de segurança e pela falta de respeito em todas as esferas da sociedade burguesa. Acredita-se ingenuamente que toda ofensiva israelense e estadunidense é um ato de defesa, provocando, no senso humanitário da mídia hegemônica, da igreja, dos conservadores e dos desavisados uma certa pena desses países porque jamais lhes dão descanso.

Diante da política bélica dos EUA e Israel e de suas investidas contra Iraque, Afeganistão, por parte dos EUA, e Palestina por parte de Israel, a mídia mundial, por meio da ideologia legitimadora da dominação dos mais “fracos” pelos mais “fortes”, esconde a verdade e produz, molda na consciência da população uma idéia de concordância com a militarização da vida, a política da guerra. Por ser a única versão que a grande massa ouve sobre tais conflitos armados, a versão das potências militares é a que toma conta da consciência da maior parte das pessoas.

Não se deve perder de vista que essa mídia está a serviço destas potências (leia-se, Capital) e que, portanto, não poderia se esperar outra postura senão a defesa incontestável das terríveis ações militares que provocam a morte de milhares de pessoas e a destruição de cidades inteiras. Há pouco, referia-me aos interesses econômicos que estão por trás de todas estas ações militares, e é a partir dos interesses do mercado que a dita “guerra contra o tráfico” no Rio de Janeiro deve ser analisada.

O Rio de Janeiro desde o ano passado além de uma cidade conhecida mundialmente pela beleza de seus cartões postais (que não são o Complexo do Alemão, tampouco a Vila Cruzeiro) tornou-se também o centro das atenções do mundo esportivo ao ser declarada a sede das Olimpíadas de 2016 e uma das cidades-sedes da Copa do Mundo de 2014. Na sociedade em que o Capital impera, o esporte torna-se apenas mais uma mercadoria. Uma maneira a mais de se ganhar muito dinheiro. Nesse momento, estão no páreo para abocanhar bilhões de dólares do Estado brasileiro os monopólios da construção civil, das telecomunicações e do mercado imobiliário. É preciso dedicar um pouco mais de atenção a esse último.

É praticamente impossível atrair investimentos imobiliários em áreas que não oferecem atrativos. Áreas consideradas violentas ou que não ofereçam muita segurança são as menos valorizadas em qualquer canto do mundo. No Rio de Janeiro, dificilmente há uma área “segura” e não violenta que esteja longe dos bairros nobres da cidade maravilhosa. No entanto, nos bairros nobres não é possível construir mais casas (mansões) além das que já estão lá. Diante de um quebra-cabeças imobiliário, não restou outra saída senão “desocupar” áreas estratégicas em alguns morros cariocas. Trata-se de uma “limpeza”, uma verdadeira “varredura” que vem sendo feita em algumas áreas ocupadas por moradores de barracos, os quais são expulsos de suas moradias sem nada poderem fazer.

A ação militar vivenciada pelo Brasil e pelo mundo na última semana em algumas favelas do Rio de Janeiro é o início de uma prática que se tornará bem mais freqüente ao passo que se aproximam a copa do mundo e as olimpíadas. A estratégia do Estado está funcionando perfeitamente no imaginário popular. De agora em diante, todas as ações militares em favelas do Rio e de outras capitais brasileiras serão justificadas como combate ao tráfico, quando, se analisarmos minimamente a seqüência dos fatos ocorridos desde o início da investida da polícia nas favelas cariocas, perceberemos que não se trata apenas de um suposto combate ao tráfico, mas sim, de um APARTHEID. O sinal verde da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro para a invasão de algumas favelas do Rio foi dado depois que algumas facções criminosas queimaram veículos em diferentes regiões do Rio de Janeiro. Não houve, até o momento, notícia de que estas facções tenham atacado postos policiais com arma em punho, a não ser um ataque com granadas a um carro oficial da aeronáutica que circulava pelas ruas do Rio. Nada justifica o ataque dos criminosos. Porém, é preciso cautela para justificar também a dura repressão colocada pela polícia não só aos traficantes, mas aos moradores das favelas invadidas.

Como já foi dito, nada justifica a queimada dos veículos pelos traficantes, mas o que chama a atenção é que esses ataques não fizeram vítimas fatais. Foram reações imediatas que acontecem diariamente no jogo do tráfico no Rio de Janeiro. É questionável a versão dada pela Secretaria de Segurança Pública de que se tratava de um ataque orquestrado pelo tráfico de drogas contra a política da segurança pública da referida secretaria. Não seria ingenuidade “do tráfico” promover ataques apenas queimando carros, quando os traficantes, possivelmente, sabiam que a reação da polícia certamente seria dura? Se realmente fosse um ataque não teriam os traficantes utilizado ao menos parte de seu arsenal?

São questões que ficam sem respostas justamente porque não são feitas pela mídia. Não são feitas porque a mídia também está bastante interessada no APARTHAID que está em marcha no Rio e nas cidades-sedes da copa do mundo.

Os homens, as mulheres e as crianças, na sua maioria negros, que moram nas favelas do Rio, a meu ver, terão uma dura rotina até 2016. A intenção do Estado e dos organizadores desses dois eventos esportivos é “limpar” o Rio de Janeiro. Colocar “esse povo” em seu devido lugar, na favela. E que eles saibam através da repressão que ali é o seu lugar, e que a zona sul não lhes pertence, tampouco podem vê-la pessoalmente. Jamais assistirão a um jogo da copa. Talvez poderiam vender seus lanches e picolés na entrada dos estádios, mas até isso já tem dono. Tem muita gente da Zona Sul interessada na venda de lanches e picolés durante a copa do mundo e as olimpíadas.

A inventada “guerra do Rio de Janeiro” não afeta a Zona Sul. Ela deixa sem luz, água, escola e transporte público (péssimo!!) os moradores da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão. Os moradores das favelas do Rio e de todo o Brasil estão esquecidos pelo Estado há séculos. Esse mesmo Estado que ora se pronuncia, promovendo a paz, é o principal responsável pela calamitosa situação na qual vivem os moradores dos morros cariocas. Não há política pública nos morros. Os canteiros da Zona Sul são bem cuidados, floridos e perfumados. Na favela não há canteiros, quem dirá flores, e o perfume que se sente é do esgoto a céu aberto.

Todos nós sabemos que a promessa do capitalismo de promover bem-estar social não se concretizou e nem se concretizará. Das relações sociais possíveis na sociedade do Capital só se pode esperar a segregação da classe trabalhadora: e o que a espera é a violência, o analfabetismo, a morte prematura por desnutrição, por infecção, a fome.

A cena transmitida em tempo real pelos meios de comunicação que retratavam a fuga de traficantes é deprimente. Adolescentes e jovens empunhando fuzis, com as mãos ocupadas, mas que não defendiam nenhuma ideologia. O que eles defendem a partir do momento em que entram para esse mundo é sua própria vida, apenas. Grande parte daqueles adolescentes e jovens que corriam jamais voltará para uma escola, poucos terminaram o ensino fundamental, e agora, correm do Estado. Antes, porém, o Estado (burguês) é que nunca se aproximou deles.

Em 2007, 19 seres humanos foram mortos numa ação da polícia no mesmo Complexo do Alemão. A ação aconteceu dias antes do início dos Jogos Pan-Americanos. Três anos mais tarde, a cena se repete. Quanto tempo esperaremos para ver a próxima? É certo que não muito.

O Rio de Janeiro inventou uma guerra nos mesmos moldes daquela inventada pelos EUA contra o Afeganistão e o Iraque. Uma vez inventada, tudo se justifica por ela. É o velho e desgastado lema de que a paz só acontece pela guerra. Se para os EUA o objetivo era angariar reservas de petróleo, para o Rio de Janeiro o objetivo é “limpar” a cidade para a Copa e para as Olimpíadas, é o APARTHEID carioca. Na invenção da guerra se pode tudo: na operação da quarta-feira (24/11) na Vila Cruzeiro, por exemplo, esse foi o perfil das vítimas, segundo o detalhado registro do jornalista do Estado de São Paulo: mortes - uma adolescente de 14 anos, atingida com uniforme escolar quando voltava para casa; um senhor de 60 anos, uma mulher de 43 anos e um homem de 29 anos que chegou morto ao hospital com claros sinais de execução. Feridos - 11 pessoas, entre elas outra estudante uniformizada, dois idosos de 68 e 81 anos, três mulheres entre 22 e 28 anos, dois homens de 40 anos, um cabo da PM e apenas dois homens entre 26 e 32 anos.

É inaceitável situações como a que se registrou no Rio de Janeiro na última semana, e tudo em nome de uma lucratividade internacional dos dois eventos esportivos, em nome da especulação imobiliária e da “limpeza” que se iniciou desde já até 2016. O Capital continua fazendo suas vítimas em todos os cantos do planeta e se articula para continuar mantendo seu poderio e sua dominação. Temos de ter claro que “nosso inimigo é outro”. Não é a favela, nem os traficantes: há a necessidade de prendê-los, mas não podemos cair na inocência de que a prisão acabará com o tráfico de drogas e todo o tipo de violência. Para isso, teríamos que ter uma cadeia em cada esquina. Nosso “inimigo é outro”, é o modelo de organização social que resulta nessa convivência bárbara entre seres humanos, que dá o “direito” para o Estado colocar no chão qualquer e todo ser humano que lhe atravesse caminho, quando ele age para manter o Estado de Direito. Estado de Direito de quem? Para quem? Para os moradores da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão que não é. Eles não tem acesso aos direitos básicos de sobrevivência. Nosso inimigo é o modo de produção capitalista com todo seu aparato tecnológico, militar e midiático. É preciso combater a ideologia vociferante que se propaga através dos diversos meios de divulgação utilizados pela burguesia, inclusive o filme “Tropa de Elite I e II”.

O Estado tem fortes meios de combate ao tráfico de drogas varejista, no entanto, parece fazer “vistas grossas” ao tráfico atacadista. Esse último é quem lucra e mantém o aparato de distribuição no varejo. Bolívia, Equador, Colômbia, países andinos, propícios para a produção da coca não dispõem de indústrias químicas para manipular a coca e transformá-la em cocaína, por exemplo. Essa manipulação é feita por laboratórios químicos fora desses países, por quem tem um “poder de fogo” muito maior que os traficantes dos morros. Resta saber se se quer realmente desmontar esse aparato atacadista ou se é “mais fácil” fuzilar homens, mulheres e crianças nas ruas das favelas, arrombar casas, saqueá-las e depois dizer que a segurança está (re)estabelecida.